Powered By Blogger

segunda-feira, 22 de maio de 2017

O Mestre da Masmorra

A Temática Gótica

Imagine um cenário situado em uma era antiga, muito similar a uma versão extremamente romantizada da nossa própria era medieval. Um mundo que ainda se apega a crenças e superstições antigas. Um pequeno e corajoso grupo de rapazes e garotas explora uma ruína antiga, tentando desvendar uma teia sinistra de mistérios, trancada dentro de um labirinto de passagens secretas. Nesses corredores tortuosos e sombrios os heróis enfrentam diversas ameaças sobrenaturais, mas nenhuma é tão terrível quanto o poderoso e corrupto mestre da fortaleza, que permanece no centro das ruínas e dos mistérios.

Essas imagens, familiares para quaisquer exploradores de masmorras dos jogos modernos de RPG, surgiram nos meios literários com o nascimento do gênero gótico no final do seculo XVIII. O pai deste gênero foi Horace Walpole, um autor diletante encantado pela sua visão romântica da idade media. Seu romance O Castelo de Otranto criou a base temática que todos os romances góticos antigos iriam seguir.

"Dark Souls, indo e voltando do cemitério"


Os romances góticos antigos eram contos de mistério, romance e horror psicológico. Embora geralmente se situassem em tempos remotos, seus autores estavam mais preocupados em estabelecer uma atmosfera de decadência e deterioração do que alcançar qualquer senso de exatidão histórica. No coração dessas fabulas antigas, permanecem os vastos castelos góticos em ruínas que batizaram o gênero. Essas cidadelas ancestrais eram mais do que simples cenários. Sua lenta transformação em ruínas pitorescas refletia a decadência espiritual de seus mestres, suas passagens secretas revelavam mistérios ancestrais e os espectros que perambulavam por seus corredores ocultavam pecados antigos nunca vingados ou mesmo esquecidos.

O senhor do castelo, e vilão do conto, era um assassino e usurpador que havia sacrificado inconscientemente toda a sua esperança e felicidade numa perseguição faustiana interminável por conhecimento, poder ou prazer. O protagonista, insignificante em comparação ao seu algoz, geralmente assumia o papel de uma garota encantadora e inocente em perigo nas mãos do vilão, ou de um bravo rapaz injustiçado ao ter seus direitos de nascença roubados.

Os contos góticos estão repletos de uma atmosfera de pavor sobrenatural. Maldições ancestrais e fantasmas perturbados manipulavam os acontecimentos e arruinavam sanidade dos personagens. Deformidades incomuns, como cicatrizes, marcas de nascença estranhas ou corcundas, transformavam homens em monstros, aparentemente punindo-os pelos crimes de seus pais. Os contos góticos evocavam horrores sutis, derivados de presságios, não da carnificina, a consciência de que o por do sol iminente libertará um vampiro de sua cripta, e não os detalhes mórbidos da fúria de um lobisomem. Na verdade, o sobrenatural era apresentado de maneira tão sutil nos romances góticos antigos que muitas vezes só era explicado completamente depois que o mistério central da trama já estava resolvido. Na claridade do dia, os fantasmas se ornavam meros truques de luz e as criaturas misteriosas revelavam-se apenas como ermitões enlouquecidos.

Mas não se pode negar a existência da presença sobrenatural nessas obras. Nos bastidores, as forças divinas do Bem e do Mal duelavam para determinar o fim da trama. A maioria desses contos góticos aderia fielmente a um mesmo roteiro: o vilão tirano cometera um crime terrível e escapara da justiça, mas sua existência fora corrompida e assombrada por seus pecados. Os jovens e inocentes protagonistas chegavam aos domínios do vilão. Este enfurecido com a pureza dos heróis ou temendo que eles descobrissem sua culpa, começava a perseguir os jovens inocentes. Conforme o conto se desdobrava, os caprichos do destino e os intrusos espectrais revelavam os crimes do vilão e as injustiças cometidas contra os heróis. Eram os próprios erros do vilão e as forças divinas da justiça, muito mais do que os infelizes protagonistas, que conduziam o vilão à sua danação. No final, todos os crimes eram vingados, o mal devorava a si mesmo e o amor verdadeiro emergia vitorioso.

"Não é sobre carnificina é sobre medo da noite e da lua"


O gênero gótico desenvolve-se no começo do seculo XIX. Novas gerações de autores quebraram a rígida formula do gótico antigo, acrescentando camadas às bases de Otronto. Os infelizes protagonista dos contos antigos foram deixados de lado, servindo apenas como meras testemunhas da ruína do vilão. O gênero gótico pertencia aos vilões: anti-heróis sofisticados que eram ao mesmo tempo repugnantes e carismáticos, detentores de um potencial surpreendente, mas desperdiçado em meio a terríveis falhas mortais. entre esses vilões góticos está Victor Frankestein, que foi condenado por suas ambições divinas, e o califa Vathek, que perseguiu sua ganancia por poder através de um inferno Árabe.

As maldições nebulosas e as assombrações dos contos antigos agora eram muito reais. Os novos autores góticos reinterpretavam as lendas ancestrais para inventar novos arquétipos de horror, Mary Shelley criou o golem de carne dando vida aos perigos e responsabilidades da paternidade. John Polidori se inspirou em seu companheiro, o famoso poeta Lorde Byron, para criar o primeiro vampiro aristocrata e carismático do mundo.

Os fantasmas e carniçais da tradição gótica eram, acima de qualquer outra coisa, doppelgangers alegóricos: reflexões sobre o mal humano. Quando Frankestein rejeitou seu monstro, afastou as terríveis consequências das suas ações profanas. Essas mesmas ações iriam retornar para assombrá-lo na forma da sua miserável criação.

Conforme o século XIX se desenrolava, as tradições góticas foram distorcidas alem de suas raízes. Quando o gênero começou a declinar, Edgar Allan Poe adicionou contos de demência e obsessão e em Os Assassinos da Rua Morgue Transportou o senso gótico de pavor antinatural para sua nova criação: o detetive erudito.

Mais uma vez, o gênero gótico retornava a vida no final do seculo. Os novos autores mais antigos. Os campos sociais de seu tempo aos estilos mais antigos. Os campos férteis da evolução e da psicologia ameaçavam provar que o homem era apenas uma besta oculta sob o fino véu da civilização. Desses medos, derivados de paixões reprimidas e traições, surgiram Dorian Gray, que escondia um retrato de sua verdadeira depravação: Dr. Moreau, que tentou transformar os homens em animais e a si mesmo em Deus: e Dr. Jekyll, cuja a luta contra sua selvageria oculta formaria as bases do lobisomem gótico.

À medida que o seculo XIX abria espaço para o século XX, um aspecto da antiga tradição gótica começava inesperadamente a voltar à tona, o herói. Os protagonistas de Drácula, de Bram Stoker, perseguiram seu adversário imortal através de toda a Europa para acabar com seu reinado maligno. Os detetives eruditos saíram de cena para dar lugar aos detetives ocultistas, como General Spielsdorf de Le Fanu, Van Helsing de Stoker, John Silence de Blackwood e Carnacki de Hodgson. Esses personagens não estudavam as ciências ocultas para conseguir poder, mas para combater o mal, esses virtuosos estudiosos deixavam seus correspondentes faustianos em regiões ainda mais profundas da escuridão.

Com seus contos sobre o caçador de bruxas puritano Solomon Kane, Robert E. Howard chegou a levar os estilos góticos para mundos de pura aventura fantástica, os mesmos gêneros de espadas e magia que um dia originariam os RPG de fantasia.

Com o surgimento do seculo XX, o gênero de horror continuou existindo. A tradição gótica deu lugar a contos estranhos de autores como H.P. Lovecraft, que mantinha uma aura gótica de decadência ao mesmo tempo em que criavam entidades estranhas e terríveis, refletindo uma sociedade humilhada pelas descobertas cientificas e a falta de humanidade durante a primeira guerra. Vampiros, fantasmas e lobisomens foram descartados como clichés gastos.

"Little Nightmares: o gênero gótico se recusando a morrer"


Mas eles sempre retornaram. Algumas décadas se passaram e a tradição gótica voltou com uma força total ao mundo, como o Sr. Hyde reprimindo há muito tempo. A cada ressurgimento do gênero gótico, os novos escritores distorciam os antigos arquétipos, aplicando sobre eles a inquietação de suas épocas. Cada era possui uma doença que poderia estar oculta nas botas de um vampiro, cada geração assistiu aos contos de Frankestein e Moreau se aproximarem um pouco mais da realidade.

O gênero gótico se recusa a repousar silenciosas em sua tumba. Seus horrores, vampiros, maniacos, fantasmas, continuam a ressoar dentro de nós, porque somos esses horrores.

Nenhum comentário:

Postar um comentário