Matinta Perera
Ainda em Fortaleza, terminei de verificar as armas dos
gigantes comprados assim como sua estrutura, como era de se esperar os Lusitanos
nos proporcionaram armas incríveis que serão de bom uso agora que existe uma
possibilidade real tanto de uma revolução no sul quanto de invasão de outras províncias
contra nosso país, mesmo um ataque dos Francos não parece uma realidade tão distante
visto que ainda que Napoleão tenha caído o sentimento de conquista ainda parece
permear os governantes daquele povo, no momento que a recém formada republica
polonesa consiga resistir aos avanços deles para nos deixarem livres desse lado
do mundo.
Embora acostumado a dormir em locais mais espartanos e comer
ração de viagem ou carne na ponta da faca em uma fogueira, poderia me acostumar
com quartos com camas macias e comida quente trazida à porta, ah sim poderia,
infelizmente homens como eu nunca são bem vindos tempo o suficiente entre os
ricos ou mesmo nas cidades mais civilizadas nessa terra, que o futuro mude isso
mais por enquanto o conforto dessa noite faz meu cérebro viajar e posso pegar a
pena e escrever algumas lembranças sem precisar me preocupar com os arredores,
oportunidade que não pode ser desperdiçada.
Se a memória não me falha isso aconteceu a quase 80 anos,
era mais jovem, mais corajoso e mais idiota naquele tempo, reconhecia o perigo
e os monstros que assolam o mundo mais acreditava que poderia enfrentá-los com
minha força e valentia, olhando para traz acredito que devo me considerar com
sorte por não ter morrido, andava em Castanhal, um povoado que começou poucas décadas
antes de eu chegar, em parte porque tinha esperanças de achar um local para
ficar, Castanhal era falado por ser um local onde os nativos viviam juntos dos negros
e dos brancos, tal possibilidade era atrativa.
A viagem tinha sido difícil embora tenha ido junto com
colonizadores Cearenses em grande quantidade, a viagem final a barco levou a
vida de alguns e o povoado cravado na selva tinha problemas severos com
segurança e com um monstro que eu resolvi que iria matar embora todos
estivessem um pouco conformados com a presença da criatura tanto que muitas
vezes lhes faziam oferenda para aplacar sua raiva, coisa impensável para mim, o
que ela merecia era o ferro de minha faca ou chumbo no cérebro, e com certeza
merecia, o problema seria conseguir tal feito.
"Longo é o alcance dela"
O que assolava Castanhal? Matinta Perera, velha como a
selva, seu nome era uma flexão do tupi que já começava a ser pouco falado no
pais embora muito presente ainda, mati tapererê, algo como alma penada,
assombração inquieta, contudo Matinta Perera era um demônio da noite como
tantos outros nas selvas do mundo e embora poderosa sangrava como qualquer
mortal, recebi ajuda de uma velha índia que se chamava Noemi, conselhos sobre o
monstro a ser caçado, penso agora que com meu ar de “cavaleiro paladino” eu
devia parecer demasiado tolo e juvenil para a anciã.
Após me contar sobre a criatura, como podia se transformar
em uma ave, que era uma bruxa de grandes poderes, resolveu me encontrar no cair
da noite na saída do povoado onde poderia me guiar para encontrar o monstro. Andamos
em ritmo lento ate perto de um cemitério na floresta apesar de parecer novo
pela cerca de pedra não estar tão desgastada o local tinha um ar de velho,
talvez índios enterrassem seus mortos ali? Não pareceu relevante perguntar isso.
–Tem certeza que ela vai aparecer? – Perguntava verificando
se a espingarda estava carregada, revisando o local onde tinha posto minha faca
longa.
–Tenho – Dizia a velha índia – Todos os anos, nessa mesma
noite, Matinta Perera vem contar os dedos dos mortos.
–Por que ela conta os dedos dos mortos?
–Por quê? Certa vez conheci um homem que morava dentro da
mata e era um pescador, a bruxa entrava em sua casa certas noites para contar
as colheres e ele se escondia e mordia um pano para não gritar. A bruxa possui hábitos
estranhos, é o tipo de coisa que eu e você não compreendemos.
–Não importa. Isso ira acabar em breve – Dizia me sentando
em uma rocha perto do cemitério, um local onde podia ver todos os túmulos e não
poderia ser facilmente visto.
–Esqueça isso filho. Volte para o vilarejo comigo – Falou ela
com preocupação genuína.
–Fora de cogitação – respondi rapidamente – Ouvi relatos de
crianças sumindo no povoado, e andando pela floresta achei ossos. Ossos
pequenos.
–As coisas tem sido assim na floresta a mais tempo do que eu
possa lembrar, mais tempo do que estou viva, não vai conseguir mudar isso.
–Vou conseguir – Respondi teimosamente.
–Vamos voltar para o vilarejo, por favor – Pedia ela com
certa piedade.
–Eu preciso fazer isso – dizia a ela que respirando fundo
começou a retornar para dormir com certeza imaginando que pela manha eu seria
achado morto.
Ali fiz meu ponto de vigília e esperei, a noite deveria
estar na sua metade quando por fim o som de um pássaro bem peculiar me chamou
atenção. A pequena coruja da selva pousou num dos túmulos e tomou forma de uma
mulher velha com longos cabelos soltos, a mesma se equilibrava em apenas uma
perna mais não parecia lhe faltar destreza, a mesma subiu em um galho caído que
começou a flutuar a cerca de 1 metro do chão e eu vi que no lugar de um pé
humano ela possuía uma garra de ave.
– Podem sair meus queridos, sua avó quer ver vocês – Disse a
bruxa, senti primeiro o cheiro pútrido e logo o horror me abateu quando as mãos
dos mortos se ergueram do solo. Fiquei longos minutos em choque ao ver aquela
cena, enquanto a bruxa contava os dedos dos cadáveres alheia a minha presença.
Logo o transe de medo deixou minha mente, preparando a mira
e engatilhando a arma, o barulho deve ter chegado aos ouvidos da bruxa pois ela
rapidamente tinha mudado a postura, logo veio o disparo, não tive o tempo que
queria para mirar pois tinha notado que ela me perceberá. O disparo não a
atingiu, mesmo ela se movendo pouco era como se a bala simplesmente desviasse
dela. Abandonei a cautela e sacando a faca corri em sua direção, era maior que
ela, esperava ser mais forte, esperava matá-la antes dela ter chance de me
lançar alguma magia, talvez se tivesse lançado alguma bravata como “esse é seu
fim bruxa” poderia ter sido mais heróico contudo nesse momento apenas gritei
avançando contra meu alvo.
O movimento foi rápido, a bruxa tentou mover as mãos,
contudo não impediu meu golpe que foi um lampejo na noite e sangue da criatura
manchou a lamina, menos do que eu esperava contudo. Apenas um corte em seu
rosto, debilitante mais nada mortal, pensei em atacar novamente contudo o grito
da bruxa, de dor e raiva, me lançou ao chão. Com o único olho que lhe restava
ela me fintou com extremo ódio, mesmo sua aparência de velha frágil me era
aterrorizante agora, a coragem tinha me deixado totalmente e lembro de ouvir
ela gritar – O que diabos você fez comigo? – com incredulidade e fúria, de ter
sequer sido desafiada por alguém, e a cada palavra da frase a terra tremia
cuspindo caixões, ossos e lapides no ar me lançando para cima, me fazendo ser
atingido por diversos escombros.
Não sei quanto tempo fiquei dormindo, acordei pendurado em
uma arvore com muita dor de cabeça e no corpo, cada osso meu tinha uma historia
de dor pra contar, então deixei Castanhal, o medo me fez sair da selva
rapidamente, medo de uma vingança daquela criatura tanto que nem fiz questão de
aparecer em castanhal, devem crer que morri. Anos mais tarde senti um aperto no
coração ao saber que uma safra daquele povoado tinha sido perdida por uma
enchente e que nos próximos 12 meses que sucederam minha fuga todas as crianças
que nasciam eram cegas de um olho.