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sábado, 28 de março de 2020

Trevas na Terra de Santa Cruz


O Bradador

Ainda estou em fortaleza, contudo preparo-me para voltar a estrada pois o que tinha que fazer fora feito e não sou um homem dessa cidade. Pensativo sei que não conseguiria viver aqui como a sombra do passado que sou e pelo fato de que minha presença parece ofender alguns dos homens modernos que aqui vivem. As cidades tornaram-se centros de luz nesse mundo escuro onde aqueles que aqui vivem estão longe de serem expostos a perigos que agora tenderam a ser esquecidos, espero que se tornando homens melhores.

Minha vida foi longa e repleta de aventuras contudo mesmo não estando tão próximo do fim por circunstancias naturais já faz alguns anos que temo por minha alma ou minha próxima vida, como desejar se referir a mesma. Muito do meu temor vem da certeza que a maldade não fica impune nesse mundo, as trevas como um animal faminto espreita as encruzilhadas e as selvas devorando e consumindo todos aqueles que lhe são próximos e dessa predação nem todos são relegados ao descanso frio e insensível no chão envenenado de uma estrada maldita, a esses esquecidos creio que a sina se completou e foi piedosa.

"Depois de morto não há mais tempo para cultivar o bem"


Existem aqueles que não possuem direito ao esquecimento, ao descanso ou a uma cova de indigente sequer e o mundo esta cheio de exemplos, das feras transmorficas que assombram estradas na quaresma ate almas descarnadas que buscam matar os vivos, anos atrás quando meus irmãos ainda viviam me encontrei um desses seres que talvez seja aquele a qual estou destinado a me tornar.

Minha juventude não foi exemplar, embora fosse a vida que eu conhecia na companhia de bandeirantes junto com um sem numero de bastardos, andando ao lado de nossos pais ou senhores aprendíamos lealdade absoluta a eles como guerreiros assumindo nosso papel como seus soldados numa guerra que nunca fizemos questão de compreender, matávamos índios para lhes tomar as terras, capturar e vender como escravos ou para gerar terror na região, bárbaros e poderosos, vivíamos na ponta da faca e ignorantes que éramos não compreendíamos outra vida possível, já homens feitos com nossos senhores tendo morrido ainda vivíamos em nossa vida de bandeirantes, bandidos, saqueadores e assassinos.

Na escuridão de uma das estradas de Diamantina jantávamos nos preparando para dormir quando um dos meus irmãos me avisou de um homem andando sozinho na estrada, era apenas um homem e não parecia estar carregando carga por isso julguei que não valeria o esforço de ir ate o mesmo pois ele não teria o que ser levado, tal foi nossa surpresa quando  o primeiro grito veio agitando os cavalos e acordando os que já estavam adormecidos a reação inicial foi rápida, um dos que acordou chutou barro para a fogueira e a apagou embora o barulho dos cavalos nos fizesse ter certeza que aquela monstruosidade viria ate onde estávamos.

Os segundos que se passaram eram longos e o suor nos descia mordendo a pele na noite, o vento frio balançava as arvores e cada grito era maior que o outro, antes do terceiro grito todos estávamos erguidos e de armas em punho, éramos 10 mestiços, armados e aguerridos, éramos 10 bandidos perigosos e que já mataram muitas pessoas e nada disso parecia importar ali.

Minhas mãos estavam geladas ainda que apertassem as armas, meu coração batia forte como se saltado para a garganta, o suor passava por meu rosto quase pingando em meus olhos enquanto ouvíamos o monstro se aproximar, seus passos quebrando galhos e esmagando plantas pequenas, claro que vinha ate nos com o barulho dos cavalos ficando cada vez pior e os gritos, eles ainda me assombram a noite, uma mistura terrível de raiva e dor, após o quarto grito tornaram-se tão altos que senti vontade de largar as armas e me encolher tampando meus tímpanos contudo estava decidido a morrer com armas em punho. Um dos meus irmãos foi mais pragmático e cortou os laços que seguravam os animais, em tropel nervoso os cavalos se perderam na mata e com o barulho das montarias fugindo o monstro disparou em seu encontro, seguindo a presa errada e nos ignorando.

Pela manha já longe do ponto onde encontramos o monstro estávamos sendo recebidos por uma mulher em sua pequena casa de beira de estrada que não parecia nos temer por saber talvez que ela pouco tinha e nada do interesse de ninguém. Lhe perguntei da existência deu um louco na estrada, esperando uma resposta mundana para o que presenciamos, lhe contei o que se passou e ela me contou a historia do feitor de uma fazenda de cana que morreu após uma revolta dos escravos do local que aconteceu enquanto ela era ainda pequena, sua mãe lhe contou que o feitor, homem monstruoso que era, foi barrado de entrar no paraíso e o inferno não lhe recebeu, por fim a terra lhe rejeitou e o mesmo persiste como monstro desmorto a assombrar as paragens agarrando-se em arvores e gritando nas estradas, após deixarmos diamantina me juntei a uma escola de jesuítas para mudar minha vida contudo mesmo hoje sei o destino que me espera quando finalmente morrer.