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sexta-feira, 22 de abril de 2022

Conto

O Povo

 

Era de noite e eu estava em casa de castigo porque meu pai ainda não aprovou que eu e o Leo estávamos namorando.

– Você tem que namorar uma garota, se for mesmo ficar com um garoto só pra me irritar podia ser pelo menos alguém do povo? – falava ele, meu pai vivia muito no passado, ele vai aceitar como eu sou, senão eu saio de casa de vez, era simples. Pelo menos era o que eu pensava, enquanto me dirigia para a velha TV meu Avô entrava na casa – Gart, que bom que eu te peguei acordado – falava meu avô se dirigindo para o sofá, apesar de velho ele era um homem vigoroso, já o vi carregar mais peso que meus amigos adolescentes sem reclamar também corria grandes distancias preferindo não andar de carro e todo mês ia caçar pelo menos uma vez, embora eu não gostasse disso, era perigoso e não é como se precisássemos, podíamos comprar comida no supermercado.

Ao se ajeitar no sofá ele disse – Ah sim. Vim contar uma história pra você rapaz, acontecida antes da família deixar a velha terra...Que história, minha criança... havia um rapaz do nosso povo – Mas eu o interrompi – Vovô! Eu não quero ouvir uma história. Quero assistir TV. – Ele ficou zangado, disse irritado – TV? Sempre TV. Não quero saber dessa máquina infernal, se falar dela mais uma vez não me responsabilizo pelos meus atos... – Se o vovô quebrasse a TV ia sobrar pra mim também de modo que eu me sentava e respirava fundo.

– O que seus pais estão ensinando? – falava ele zangado – Na velha terra ninguém iria ignorar uma história pra ficar na frente dessa coisa mecânica – dizia se referindo à TV. Revirando os olhos eu lhe dizia – Vovô é uma coisa que todo mundo faz aqui, ver TV pra passar o tempo – Ele riu ao ouvir isso – Se todo mundo arrancar fora o coração e enterrar na encruzilhada, você faria o mesmo? – Claro que fiquei calado mais suspirando, ele também suspirou e disse – Bom. Deve ser minha culpa, sou velho e me lembro dos costumes antigos, então o que é que eu sei? Não assisto MTV, não sei de nada então quem ouve minhas histórias malucas?

Claro que ele estava fazendo chantagem, mas eu não gostava de ver meu avô triste mesmo que fosse de fingimento e me rendendo totalmente dizia – Desculpe vovô, por favor me conte a história – ele me olhou de canto de olho como que medindo minha honestidade e eu disse – Sim, por favor, eu quero ouvir agora.

Então ele começou, tomou uma posição melhor no sofá e falou – Certo, havia um rapaz do nosso povo. Ele era pobre, sim, mas honesto e vivia na floresta, com seu pai. As florestas de hoje são coisas pobres. Aquelas eram as verdadeiras florestas, as da velha terra. Homens entravam nelas e nunca mais saiam meu jovem. Havia árvores, tão velhas quanto podem ser, imensas e enraizando seus corações negros como o pecado tão fundo no chão que poderiam tocar o submundo, muitos diziam, contudo, que as mais estranhas andavam de noite quando ninguém via pois algumas árvores já foram vistas em locais diferentes – eu rapidamente interrompi – Ah vovô eu entendi, na floresta tem árvores eu não sou burro – ele disse em resposta – Certo jovem porque você não me conta a história? Talvez eu deva ouvir já que você conta tão bem – Novamente me calei um pouco constrangido – Agora. No verão a floresta quente e os verdadeiros ursos rondavam, eles andavam em duas pernas, guardando a floresta, só se apoiavam nas quatro patas quando queriam correr atrás de um homem idiota na floresta, mas no inverno? O inverno era frio o bastante para arrancar a pele de seu rosto e congelar sua urina antes dela tocar o chão. Nesses tempos os verdadeiros lobos saiam das estepes para o sul, para dentro da floresta, levados pela fome, às vezes havia pouca comida para eles e menos ainda para nós. Humm. Sim, nós, as pessoas nos temiam, haviam poucos dos verdadeiros filhos da floresta mesmo naquela época, mal sabiam que um carvoeiro ganancioso, caçador ou lenhador seria mais perigoso para viajantes que alguém do povo, não éramos ladrões e ignorávamos os forasteiros desde que entrassem e saíssem com respeito.

Meu avô pareceu pensar um pouco em como continuar antes de dizer – Existiam clareiras na floresta, onde esses lenhadores, carvoeiros e caçadores viviam, nervosos, agarrando suas crianças com medo. Tremendo junto a fogueiras esperando manter a escuridão distante. Tolice, mas a mãe desse guerreiro a quem vou contar havia morrido trazendo-o ao mundo, ela lhe deu vida e um pequeno anel de madeira, o nome Vassily estava escrito nesse anel. Já existiram legados piores. – Novamente interrompi dizendo – Vassily? Mas esse não é....? – Foi a vez do meu avô me interromper dizendo – Um nome comum naquela região.

Ri quando meu avô me interrompeu, de alguma forma aquilo me pareceu engraçado, e ele continuou – Vassily e seu pai viviam longe de quaisquer outros, no fundo da floresta, e não viam ninguém, ou quase ninguém, pois viajantes naquelas partes eram poucos e temerários, em seus dezesseis invernos quando uma mascate apareceu nas estradas velhas e sem cuidado. – Perguntei de pronto – Era uma de nós? – Meu avô disse – Não menino. Ela era nômade. Sangue Romani. Era como um velho corvo bicudo e recurvado pelo peso de sua idade, ela tinha dois dentes bons em sua boca, dois olhos esbranquiçados que já não via muito bem, mas ainda assim ela viu Vassily, não que ele tentasse se esconder, sentado num tronco apoiado em seus joelhos, ele permanecia imóvel como pedra quando a velha lhe chamou – Pode sair menino, não pense que eu não te vejo, porque vejo. Como chamam-no em sua casa?

Claro que o jovem se apresentou – Vassily – disse rapidamente.

– Estou com fome Vassily... – E o rapaz saía para a escuridão, retornando rapidamente com uma grande lebre a levando pelas orelhas, a velha sorriu animada porque encheria o estomago de carne – Isso é boa comida, obrigada Vassily – Enquanto a lebre era aberta e limpa, a velha continuava – Há muitos de sua gente por aqui? Você não precisa ter medo de mim rapaz. Não estou procurando problemas e sim fregueses – Após limpar o coelho e começar a fazer uma sopa, ela sacava das costas um saco que parecia pesado, mostrando os itens que acumularam.

– Valiosos como a primeira estrela da noite, que minha visão escureça se estiver mentindo – falava com seu sorriso de poucos dentes – Tantas coisas maravilhosas, tenho o coração esmeralda de Koschei, o imortal. Ele guardava a vida nesse artefato mais uma mulher o roubou e ele morreu. Também tenho um manto feito da substância da noite, tecido em um país bem distante de onde estamos agora, este manto foi tecido da seda de vermes negros que se alimentam das folhas de arvores escuras que crescem em cavernas sem luz sob a terra, arvores que retiram sua força da noite. Também tenho um tambor que se tocado quem você quiser que ouça irá ouvi-lo mesmo que esteja em outro mundo, Empusa fabricou-o do couro de um wyvern e a madeira dele veio de Yggdrasil.

– Mas vovô como uma velha senhora conseguiu tamanho tesouros? – perguntei inocentemente e ele me respondeu – Claro que eram falsos garoto, está maluco? Como uma mascate andaria por aí com o coração esmeralda do imortal Koschei? –  Rapidamente falei – Mas você disse ... – ele fez um sinal para eu me calar e me explicou – Garoto, ela era Romani, ele era Gajé... Alguém de fora. Para eles não é crime enganar os Gajé, e ele nunca viu tantas coisas lindas na vida mesmo que talvez fossem falsas. Era perfeito para ser enganado. Mas uma terceira voz veio das sombras da floresta – Devolva, filho. Ele não tem nada para lhe pagar, velha. Somos gente pobre da floresta e não temos nada sobrando – O pai do garoto lhe olhava com um olhar inquisidor de modo a chamar atenção da velha.

– Não seja duro com o rapaz, é um bom menino – e logo eles se afastavam da velha – Não deveria falar com as pessoas na floresta, filho. Elas nos querem mal, sei que era apenas uma velha, parecia bem intencionada, mas ela não é do povo – explicava o pai de Vassily.

Seu pai disse muitas coisas naquela noite a respeito do povo e das pessoas fora da floresta, mas Vassily não escutou. Ele pensava na velha Romani e em sua sacola. Tanto que o rapaz saiu de casa aquela noite para reencontrar a velha, que em um acampamento improvisado descansava comendo pão e tentando fugir do frio, tal foi a surpresa dela ao ver o jovem saindo do escuro que por instantes perdeu a voz, só recuperando quando ouvia Vassily falar – Meu pai disse que as coisas mostradas por você não têm valor algum.

A mulher respirou fundo ao reconhecer a voz de quem a abordava – Você me assustou. Não te ouvi chegar. Meus ouvidos já não são mais o que eram, ai ai, sobre as coisas garoto, vale o que as pessoas pensam, não o valor que é real. O valor está nos sonhos menino – Ela puxava algo de sua bolsa – Como você foi bom comigo então, tome isso como presente – Falava lhe dando um retrato – Esse é um retrato da filha mais jovem do duque, fique com ele é seu – O jovem Vassily pegou o retrato admirando a bela moça – Um dia eu fui mais bela do que ela. Eu tinha longos cabelos negros, podia andar e sorrir e dançava em todas as vilas de Pskoff a Vyatka e todos os rapazes me olhavam, eles tinham fogo nos olhos – falava a senhora dançando de maneira desengonçada – Ah nessa época eu cometi erros de verdade... Meu pai queria me casar com um bom homem... mas eu fugi dele e meu coração se partiu. mas eu sempre segui meu coração entende garoto? – Mas o jovem Vassily não entendia, ele nunca tinha se apaixonado ou seguido paixões diferentes, a velha viu seu silencio e sorrindo dizia – Mas você tem um bom coração, venha, dê-me sua mão e olhe em meus olhos e eu lhe direi sua sorte.

Talvez a velha tivesse mesmo visão além de pessoas normais, pois assim que olhou nos olhos do jovem Vassily ela entrou em pânico, correndo mais do que seria crível para sua idade, gritando para o jovem ficar longe embora ele permanecesse imóvel, a velha senhora fugindo pela floresta como um coelho assustado não notou o barranco a sua frente e despencou quebrando seu velho corpo e assim morrendo – Certo, melhor me poupar dos detalhes de como ficou o corpo da velha senhora certo? – falei rapidamente para meu avô que me respondeu – Tudo bem vamos passar essa parte sórdida.

Vassily recuperou, claro, os tesouros da velha mascate, contudo se sentia atraído pela pessoa no retrato, pensava nela todas as noites e todos os dias, seu coração não estava mais na caçada e os animais que ele matava eram mortos sem orgulho – Como era? – interrompi meu avô – Como era a moça da miniatura? – Pensativo ele demora um segundo para falar – Ela tinha olhos azulados como flores do milho, lábios vermelhos como maçãs, pele branca como o leite, cabelos dourados ... – Interrompi – Uma super modelo, entendi – Meu avô falou rapidamente – Foi você que perguntou garoto, então vamos continuar a história? Onde parei? Ah sim, ele juntava lenha sem alegria, e corria sem deleite pela sua velocidade ou seu silencio, Decidido a interromper essas sensações, juntou num lenço as poucas posses que tinha, uma moeda de bronze azinhavrado, um pequeno osso que ele havia talhado na forma de um pequeno osso, um anel fino de madeira que sua mãe lhe havia deixado – O pequeno osso era o que? – perguntei – Era uma escultura talhada na forma de um outro osso – ele me respondeu mais eu insisti – Antes era que osso? – meu avô falou rapidamente - Isso importa mesmo? vamos continuar a história, eu não te peço para você me explicar as letras das músicas que você ouve certo? "whos bad" quanta besteira, vamos só continuar, o pai de Vassily estava fora caçando então era a melhor hora de sair de casa – rapidamente interrompi de novo – E meus pais reclamando que eu volto tarde de uma festa – meu avô falava – Isso ocorreu nos velhos tempos, na velha terra. Nós agíamos de modo diferente por lá.

Por dois dias Vassily andou até que alcançou os limites da floresta onde numa pequena aldeia a primeira construção a vista era a estalagem do local, com seu teto forte e vários quartos logo se destacava entre as casas de cômodo único visíveis, indo em direção a taverna o jovem encontrou com um homem de fora do povo a primeira vez na vida, o estalajadeiro era um homem alto sim, mais gordo além do que seria recomendado para você viver na floresta, como fugiria se necessário se não podia correr rápido? O homem dava as boas vindas falando – Não vemos muitos mascates por aqui. Por onde veio rapaz? – Vassily disse – Através da floresta – O homem olhava-o, o medindo e vendo se o jovem ria da mentira que acabou de ouvir, pelo menos o estalajadeiro achava que era mentira – Então você é o que? Um diabo ou algo assim? Teve só sorte de escapar com vida da floresta? ela é lar de fantasmas, ogres, monstros de diversas sortes, certa vez vi sombras passando pela noite mas elas nunca se aproximavam da cidade, de qualquer forma, o que vende garoto mascate? – Alguns livros, um tambor, algumas coisas – Vassily não era acostumado a falar e não entendia porque o estalajadeiro falava tanto – Daqui vou para o palácio do duque, em que direção fica? – o homem novamente olhava o jovem mais se demorava em sua sacola – Duas semanas de viagem para o oeste, se pretende vender coisas para o duque, deve ter muitas riquezas, vamos, passe a noite por aqui, pela manhã você retoma sua viagem.

Vassily aceitou o convite e comeu pouco da comida indiferente da estalagem, indo para o quarto ele trancou a porta, observava coisas estranhas como as pernas da cama pregadas no chão de modo a que ela não fosse movida, seu instinto falou para dormir no chão do lado oposto e durante a escuridão da noite quando a estalagem estava quieta, um painel se abriu na parede acima da cama, um pesado machado caiu sobre o travesseiro rompendo a cama ao meio com um único golpe, mas o estalajadeiro não acertou o jovem que mostrando a força do povo, pela manhã Vassily tendo aprendido uma valiosa lição naquela noite pegou de volta a moeda que deu em troca de comida e abrigo, sentindo-se bastante justo em fazê-lo. Tomando o caminho para o oeste na escuridão da estrada com neve caindo houve mais um encontro, o homem era muito alto, talvez o mais alto homem que o jovem viu ou mesmo veria, contudo também o mais magro, como que se um poste tivesse tomado vida e começado a andar com pernas e braços, embora nunca tinha visto um deles, Vassily reconheceu nele as histórias do povo gentil – Povo gentil? Sério? Baboseiras magicas a esse nível vovô? E porque raios chamavam eles assim? – respondia rapidamente – Não é sábio atrair a fúria deles, é uma forma respeitosa de se referir aos mesmos, bom o viajante se aproximou de Vassily – Onde ruma jovem? – seus olhos rapidamente fintaram a bolsa, seu olhar era estranho, como se houvessem centenas de luzes dentro dele – Para onde meus pés me levarem e onde meu coração desejar – Respondeu Vassily.

– Não é desrespeito tratar dessa forma? – Perguntei a meu avô que me respondeu – Você não pode dar destinos certos ao povo gentil, eles não compreendem a nós, talvez ele queira fazer uma boa ação e desgrace a sua vida se você falar onde mora ou para onde vai, continuando a história, o estranho falou.

– E o que carrega jovem mascate?

– Muitas coisas senhor, mais bugigangas sem nada de valor.

– O valor está nos olhos do comprador, não do vendedor – Falava olhando para a sacola – Contudo, estou procurando por um livro, pensei que talvez você pudesse vendê-lo para mim.

– O livro que eu tenho é o você procura? como pode saber disso?

– Simples, pois não és o primeiro a carregar essa sacola, isso está visível. A questão não é se você tem o livro mais o que deseja receber por ele.

– Ela – Disse Vassily para o estranho erguendo o colar.

Suspirando o estranho falou – Ai de mim! Não posso pagar nada como isso. Sou apenas um bibliotecário que perdeu um livro.

E ao falar isso o viajante deu as costas a Vassily e desapareceu ao passar por uma arvore, eu sei o que está pensando garoto, você não acredita em fadas, claro que não acredita afinal tem 15 anos, ninguém com essa idade acredita em fadas, é necessário ter pelo menos 40.

Eu rapidamente falei – Isso tudo soa pós-moderno pra mim vovô. Tem certeza que essa história é da velha terra?

– Não me interrompa com perguntas bestas, sou eu que estou contando a história não é? Vamos e ouça sangue do meu sangue, ou que os ancestrais me ajudem, vou rasgar sua garganta com os dentes.

Me desculpei e deixei meu avô continuar.

– Vassily continuou sozinho na estrada, embora as vezes ouvisse os lobos e o grasnar de um corvo, o sol se ergueu e caiu novamente e ele continuava sozinho na estrada, lama, gelo e grama grossa retardavam seu caminhar e na escuridão da noite do terceiro dia o homem alto reaparecia, ele trazia uma sacola de lona e a jogava aos pés do jovem Vassily. O tesouro da bolsa cintilava, pedras preciosas, ouro, prata, metais que eu nem saberia dizer o nome estavam ali e o homem alto falou.

– Isso tudo pelo meu livro.

– O livro que eu tenho, pode não ser o livro que procura senhor – Respondeu Vassily.

– É o livro, tenho certeza.

– Não quero ouro. Eu vendo o livro pelo preço que dei.

O homem alto olhava para Vassily de maneira estranha era impossível para o jovem falar o que aquele ser pensava, ele era enigmático demais, e Vassily se sentindo ameaçado dizia – Ou posso queimar o livro.

O estranho ria e dizia – Ele não vai queimar.

Irritado Vassily falou – Que seja, não o queimarei mas só será seu se pagar o meu preço.

– Como desejar – eram as palavras do homem magro que novamente se virou e foi embora sumindo na noite.

Naquela noite as nuvens se afastaram, a lua estava cheia e mesmo focado no seu caminho Vassily sentia o chamado da caçada e começou a correr pela floresta, suavemente namorando o luar e farejando o ar ele encontrou uma corça.

Carregado com o saco ele caçou a corça. Seguiu por muitos arbustos pela mata, exultando-se na perseguição, a corrida era liberdade, a caçada era liberdade e Vassily se encontrou desejando que a mesma prosseguisse para sempre. Corça e caçador unidos até o fim dos tempos. Tudo tem um final contudo e ao se preparar para o abate a chance foi retirada, saída da escuridão como uma sombra, rápida como um pensamento, ela saltou na corça e mesmo sem mostrar garras e presas, com força e destreza ela quebrou o pescoço da presa.

– Boa noite a você, se tivesse sido mais rápido a corça não seria minha agora – falava ela, a lei sobre caçadas era clara, ela pertencia a quem abateu, mais todos os que ajudaram recebiam sua parte.

– Estou carregando uma sacola nas costas. Se não fosse por ela, eu seria mais rápido. Eu a persegui por muito e muito tempo – Falou Vassily protegendo a imagem de sua pericia como caçador, mas não obteve resposta da mulher que colocou o animal nas costas e rapidamente se aprumando carregava-o para sua tribo – Seu povo vive perto daqui? Posso acompanhá-la? – e ela respondeu – Se quiser.

O acampamento era simples, um grupo pequeno do povo vivia naquela parte do país, a mulher contou a história da caçada "ele tentou pegar a corça, falhou, eu consegui" para justificar a presença de Vassily e isso foi o suficiente, havia muitos deles mais eram seu povo e Vassily não se sentiu ameaçado, não lhe fizeram perguntas e ele não lhe deu respostas e nada foi exigido. Antes do nascer do sol, Vassily notou que atrás do acampamento, uma cabana pequena, capaz de abrigar apenas uma pessoa, ciscava no chão, erguida em patas de galinha, uma mulher velha, com um único olho, assava algo estranho na fogueira perto da cabana.

– Boa noite a você, grande dama – disse Vassily se aproximando ao que foi respondido.

– Bem dito, pequeno sobrinho. o que carrega na sacola para sua velha Tia? – Falou a velha puxando um cachimbo e fazendo a ponta explodir em uma pequena chama, sem necessidade de uma brasa ou fogo ser tirada da fogueira e enquanto tragava ouviu de Vassily – Algo que sempre quis Grande dama, o coração esmeralda de Koschei, o imortal. – Os dentes de ferro de Baba Yaga cintilaram ao luar em seu grande sorriso onde fumaça do cachimbo escapava – Aqui está um tesouro que me interessa, um verdadeiro dom, o que iria querer de sua velha tia por isso?

Foi negociada a passagem para o castelo do duque, a bruxa e Vassily viajaram então em seu grande pilão. Na sombra negra de Baba Yaga, bebes choravam e mães abortavam, o leite azedava e homens enlouqueciam. Em sua passagem judeus eram queimados em suas casas e ciganos espancados até a morte. Aves noturnas gritavam, corujas piavam e lobos uivavam. Mesmo que a noite estivesse no fim a dupla viajou mais rápida que o vento. antes do amanhecer já pousaram no castelo de inverno do duque. Onde a bruxa exigiu o pagamento, o coração esmeralda de Koschei o imortal, antes de bater três vezes em seu pilão e voar gargalhando, rindo alto o bastante para rachar torres, fazerem sinos de igrejas caírem, estradas racharem e despertar os mortos.

– ESPERE... espere, pensei que você tinha dito que NÃO ERA o coração esmeralda de Koschei o imortal, VOCÊ tinha dito que a velha mascate tinha MENTIDO.

– TALVEZ eu estivesse errado TALVEZ Baba Yaga fosse facilmente enganada? quem sabe? O contador de histórias é um mentiroso, mas a história? a história sempre é real, se atente a ela.

– Tá bom...

– De qualquer forma... Vassily subiu a escadaria e espancou o grande portão ao que foi atendido por um homenzinho gordo que cheirava a talco, o homem diminuiu mais ainda ao ver Vassily, seu olhar brilhante e suas feições, ele reconhecia o povo que era temido por todos no rosto do jovem a frente dele e Vassily mostrou o colar ao pequenino e falou em tom de ordem.

– Procuro esta mulher.

– Procura?... bem... Oh grande e nobre senhor eu não sonharia em negar nada a você. A jovem dama contudo precisa ser despertada, vestida, banhada e empoada antes de ver alguém tão importante quanto você, menino mascate. Siga-me e vamos a sala de espera.

O homenzinho estava aterrorizado, mas Vassily não podia sentir o cheiro, pois o perfume e talco o rodeavam como uma névoa, ele não estava acostumado com pessoas da cidade e julgando pelo tamanho do castelo não estranhou andar tanto para ir a alguma sala, descendo degrau após degrau, ingênuo com relação a como um castelo funciona, não estranhou que "a sala de espera" tivesse uma porta de ferro. Apenas quando ela pesadamente se fechou atrás dele, trancando-se, notou que caíra em uma armadilha.

Preso pelo dia que nasceu até a noite, Vassily se preocupou em como iria escapar, a porta era de ferro grosso e forte, não havia janela e a cela era forrada em pedra e argamassa. Ele era do povo e podia ver na escuridão total porque não tinha arruinado os olhos com televisão...

– Meus olhos são ótimos vovô.

– Vai julgar esse velho por se preocupar? Seus olhos são bons? Ótimo, os dele eram melhores.

Tanto que estranhou que uma luz surgisse do nada em sua cela na noite seguinte, como que saído da parede o homem alto e magro vinha com uma vela na mão e falava – Boa noite meu jovem, eu vim buscar o meu livro.

A paciência de Vassily não estava para tratar com ninguém – Se tivesse esperado uma semana não teria que pedir, poderia tê-lo tirado do meu cadáver.

– Não é tão simples, o livro está ligado a você, nesse momento ele lhe pertence e se morrer aqui, pertenceria ao duque, e eu realmente não tenho vontade de abrir negociações com o duque, vamos meu jovem, você é muito mais razoável e sábio, quero evitar chamar atenção demasiada. Eu posso lhe dar a liberdade, essa porta se abre agora se você me devolver o livro - falou ele

– Não – Clamou Vassily – Eu sou do povo, Homem, o que eu procuro eu acho, o que eu caço eu pego. Posso me esconder na menor das sombras. Meus dentes são afiados o bastante para cortar ossos, corro em quatro patas tão fácil quanto em duas, sou parente de homens, lobos, espíritos e fadas. Não devo lealdade a ninguém nascido e não temo nada. Eu quero a mulher.

O homem alto suspirou, não lhe havia sobrado alternativa – Oh senhor... Venha comigo então – O homem magro levou Vassily através de uma porta que não estava lá antes, então uma biblioteca gigantesca apareceu, livros sem fim forrando corredores e eles andaram, andaram tanto que parecia não haver final para a caminhada, o homem magro tentou evitar de chamar atenção de alguém mais a presença de Vassily era incomum naquele mundo, algo que não deveria estar ali e não demorou para em um dos corredores serem surpreendidos por alguém, era difícil olhar seu rosto pois ele brilhava como uma chama ou como uma estrela, vestindo roupas nobres que brilhavam menos era mais simples olhar para seu peito ou pés.

– Oh senhor... admito que desejava poupá-lo desse problema

Vassily rosnou se preparando para atacar, sentia que aquele homem poderia ser perigoso mais com uma única palavra de autoridade ele o fez parar – Quieto – disse o estranho nobre e Vassily se sentiu compelido a obedecer, o homem magro falou.

– Um dos livros está faltando na biblioteca, senhor. Ele está em posse deste rapaz, mas ... está tudo certo, já resolvi esse problema ele vai devolvê-lo por um preço que estou tratando de pagar – Ao ouvir isso o nobre perguntou – Humm... entendo... que preço?

Vassily então mostrou a miniatura que carregava, falou de sua história e o nobre luminoso sorriu, pelo menos foi a impressão que Vassily teve, pois seu rosto se iluminou mais ainda – Entregue o livro, seu preço vai ser pago – E o nobre ergueu as mãos, Vassily e a dupla improvável se via então no quarto da filha do duque, cujo o nome agora me escapa, Natasha ou algo assim, adormecida em sua cama.

Vassily viu a jovem sonhando, adormecida em sua cama luxuosa, olhou-a, ela era linda sem duvidas, pálida e frágil. Era tudo que ele havia sonhado. Mas apenas deixou o retrato em sua cama e se virando à dupla pediu – Estou faminto, me levem daqui por favor.

Os dois, como habitantes do sonho sabiam que as vezes era melhor que desejos permanecessem como desejos então nada falaram da decisão do rapaz, o nobre contudo levou Vassily a seu palácio novamente onde pode comer de carne de gamo, lebre, faisão e cabrito, onde pode beber tokay, sherbet e brandy fino.

Após tudo isso ele acordou na floresta como se nunca tivesse saído de lá. Era uma noite de primavera e a lua crescente se erguia branca e brilhante no céu, ele correu pelas matas na forma de lobo. Reconheceu o cheiro da mulher que encontrou tempos atrás na floresta. A caçada que fizeram juntos durou horas, até que no fim, os dentes dele se fecharam, suavemente, no pescoço dela, sem romper a pele, e ela ficou parada. Mudando de forma muitas vezes, entre lobo e homens, eles celebraram sua união. O povo veio de centenas de léguas de distância para o casamento, e eles viveram felizes juntos até que a morte os separou.

– E é só isso? Essa é a história? Meio machista não?

– Não é nada machista. É o costume do povo, ou era, antes de virmos pra cá.

– Sei... então como foi que o livro de um monarca das fadas foi parar na sacola de uma mascate?

– Não sei, o povo belo retem seus segredos, eles não contam nada, o livro apenas estava lá.

– Não existe nenhum monarca luminoso, só outra pessoa inventada nessa história maluca. E eu sei sobre o que é essa história. Meus pais te pediram para fazer isso! É sobre Leo não é? Sobre meu namorado.

– Porque seria sobre seu namorado?

– Porque ele não é do povo, ele é um homem comum. Você é transparente vovô. Olhe, nós não moramos mais nas florestas. Aqui não é Novaya Zemlya e eu posso sair com quem eu quiser.

– Não foi sobre isso, a história era verdadeira

– Verdadeira? Dá um tempo tá legal?

– É uma história do povo, você não quer saber de onde vem? Quem é você?

–  Na verdade não. Ela é machista e insular, e a moral é que o povo está feliz com o povo. Grande surpresa. Eu sabia que devia ter assistido TV. Pelo menos ela não tenta fingir que ainda estamos vivendo quinhentos anos atrás.

– Não era uma história sobre seu namorado, não era nem mesmo sobre o povo, era sobre o que ele viu quando olhou a mulher adormecida, porque ele virou as costas para ela, era a respeito de sonhos.... Mas a culpa é minha, pensei que você iria querer ouvir a história. Assista sua TV, seus pais vão chegar em casa logo.

– Boa noite vovô.

– Eu gostaria que você pudesse ter conhecido sua avó. Uma mulher notável. Ela conhecia o valor das coisas. Mas nunca me deixou esquecer que tinha me vencido pegando a corça.

– Vovô?

– Boa noite.

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